Natural de Goiânia – Goiás, mas residente no Tocantins desde os cinco anos de idade, a indígena Nahuria Karajá é exemplo de que a educação é para todos, sem distinção de cor, raça ou crença. Ela comemora a finalização do doutorado, o primeiro para uma indígena médica-veterinária no Brasil, e o retorno para Formoso do Araguaia, cidade a 276 km da capital Palmas e a mais próxima da sua Aldeia Txuíri, localizada na Ilha do Bananal.

Incentivada pelo pai Idjarruri Karajá, um grande líder indígena, Nahuria enfrentou as falhas educacionais, dificuldades financeiras e o preconceito, buscando realizar um sonho para ela e sua comunidade. Hoje, é inspiração para futuras gerações, não somente indígena, mas de outras minorias, que muitas vezes sucumbem às barreiras impostas pela sociedade colonial e patriarcal há centenas de anos.

O CRMV Tocantins conversou com a médica-veterinária, que atualmente trabalha em um consultório veterinário e tem muito orgulho de toda sua trajetória. Ela usa tudo o que aprendeu no mestrado e doutorado em Ciência Animal Tropical com ênfase em Patologia Animal aplicada a Toxicologia para dar um diagnóstico mais assertivo, mesclando teoria e prática. Veja a entrevista e conheça um pouco mais sobre essa profissional que é modelo para todo o país:

CRMV Tocantins: Conte um pouco da sua história e de que como veio para o Tocantins?

Nahuria Karajá: Sou filha do Idjarruri Karajá, um grande líder indígena do nosso país, um homem que nasceu com um pensamento muito além do seu tempo e isso foi muito importante para minha formação. Ele saiu da aldeia quando ele tinha 12 anos de idade. Não sabia falar português, saiu só com a roupa do corpo e foi estudar. Em cinco anos, ele já ministrava palestra internacional, falando em três línguas: português, inglês e espanhol. Esse pensamento que ele tinha, tão fora da realidade da aldeia, tão fora do seu tempo, não só em relação aos indígenas, mas aos não-indígenas também, foi muito importante para minha formação, porque essas conversas que ele tinha, esses debates políticos que ele tinha fora, ele acabou trazendo para dentro da nossa casa. Nós temos o costume de todo mundo comer junto, fazer a refeição junto, então é um momento muito importante para a nossa família que é quando a gente atualiza uns aos outros sobre o que está acontecendo não só sobre as nossas próprias vidas, mas sobre política, sobre economia, sobre o que está ligado a nós direta ou indiretamente.

Depois que ele saiu da aldeia, meu pai conheceu a minha mãe que não é indígena, em Brasília – Distrito Federal e os dois acabaram se casando e foi daí que nasceu a minha história. Meus irmãos nasceram em Brasília e eu nasci em Goiânia porque eles viajavam muito por conta desse mundo político que meu pai vivia e fez com que eles andassem muito. Então, na verdade eu sou nascida em Goiânia e quando eu tinha 5 anos nós viemos para o Tocantins para morar na Ilha do Bananal.

Quando nós chegamos aqui, onde é a minha aldeia hoje, que se chama Aldeia Txuíri, não era uma aldeia, era um povoado com pessoas não-indígenas também. Nós não fomos recebidos amigavelmente, não tivemos uma boa recepção. Aí, com isso, meu pai liderou e organizou a desocupação da Ilha do Bananal.

CRMV Tocantins – Como foi sua formação educacional?

Dra Nahuria Karajá – Eu estudei nesse lugar, que era um povoado, a minha primeira e segunda séries. Depois, esse povoado se tornou uma aldeia e eu continuei estudando no mesmo lugar. Quando terminei o ensino fundamental, que naquela época era até a oitava série, fui para uma escola pública de Formoso do Araguaia, onde fiz todo o ensino médio.

CRMV Tocantins – Como escolheu a medicina veterinária?

Dra Nahuria Karajá – Em 2004, eu fiz o vestibular, o único vestibular que eu fiz na vida foi para Medicina Veterinária, na UFT – Universidade Federal do Tocantins, em Araguaína, cidade ao Norte do Tocantins. Também fiz o ENEM e ganhei bolsa integral para Engenharia Agrícola na ULBRA – Universidade Luterana do Brasil. Levando em consideração, que nós vivemos na maior ilha fluvial do mundo, que é a Ilha do Bananal, que além dos animais silvestres, também tem projeto de bovinocultura que é vigente, vimos que a medicina veterinária poderia ser muito interessante para o desenvolvimento da região e do meu povo também.

CRMV Tocantins –  Quais foram as principais dificuldades encontradas na sua trajetória?

Dra Nahuria karajá – Quando você sai da aldeia, o mundo aqui fora é muito diferente. Na aldeia as pessoas se ajudam mais. Tem muitas dessas questões familiares e que uns cuidam dos outros. Fora da aldeia, as pessoas são mais respeitadas pelo que elas têm do que pelo que elas são. Com certeza eu tive um baque não só cultural, mas também financeiro, meu pai tinha acabado de morrer.

Além disso, sofri com relação ao próprio estudo, porque eu nunca tinha passado uma noite inteira estudando. Eu fui aprender isso em Araguaína, na UFT, a como estudar, como aprender, como conseguir passar nas disciplinas, e quando fui para lá foi pelo sistema de cotas. Acontece que o sistema de cotas te dá a oportunidade de entrar na universidade, mas ele não te ajuda a passar nas disciplinas. Por exemplo, não tem sistema de cotas em uma disciplina que chama bioquímica, ou fisiologia, ou anatomia. A partir do momento que você está na universidade, você é igual a todo mundo. Então, considerando a minha falta de base, porque o estudo na aldeia realmente é muito precário, e na escola pública, pelo menos de cidade pequena, também. A gente fica meses sem professor de física, sem professor de biologia, sem professor de química, estudando com colegas que frequentaram grandes escolas particulares. A diferença de base é muito grande. Então conseguir se adaptar a essa nova realidade é um processo árduo, doloroso, porque precisa estudar mais do que os outros, já que a tua deficiência de base te deixa atrás. Você tem que se dedicar mais para conseguir acompanhar.

CRMV Tocantins –  Como ocorreu a escolha pelas pós-graduações?

Dra Nahuria Karajá – Quando eu fui entrar na pós-graduação, era a melhor possibilidade que eu tinha. Era melhor eu continuar estudando do que ficar parada. Fiz a prova da pós, que na minha época, não tinha sistema de cotas, e foi universal, enquanto terminava meu TCC – Trabalho de Conclusão de Curso e eu passei. Na verdade, foi uma continuação da minha jornada. E quando eu terminei tudo, tanto o mestrado como o doutorado, eu cheguei em Formoso sem uma perspectiva de emprego. Enquanto eu estava lá, pelo menos eu estava conseguindo mais conhecimento, que me ajuda bastante até hoje, com o desenvolvimento do raciocínio lógico. Foi importante para a minha formação, e atualmente faz diferença no meu dia a dia.

CRMV Tocantins –  Você está atuando em qual área?

Dra Nahuria Karajá – Políticas internas não me permitiram trabalhar no meio do meu povo. Aquele plano de trabalhar com bovinocultura na Ilha do Bananal não aconteceu. Acabei indo em outra direção, que foi a clínica de pequenos animais, que sou a proprietária, mas que também tem sido muito interessante, porque aqui não tinha nenhum consultório veterinário até então. Os pets eram basicamente atendidos em clínicas veterinárias em Gurupi. Com a chegada do consultório em Formoso, essa realidade mudou bastante. O que acho bacana é que as pessoas tem aprendido mais a respeito dos cuidados com os animais e a cidade de certa maneira, está sendo educada também a respeito de que independente da sua origem, da sua raça, se você tiver muito esforço, sacrifício, dedicação, vai gerar conhecimento e isso pode salvar vidas.

CRMV Tocantins –  Você percebe que a sua atuação na cidade tem mudado opiniões?

Dra Nahuria Karajá – Hoje a concepção tanto da medicina veterinária, assim como a questão racial, é diferente na cidade. Muitos me conhecem como a Dra Índia porque eu imagino que eu faça parte de uma minoria, onde isso não seria esperado. Mas os resultados tem mostrado que o estudo é muito democrático, que ele dá oportunidade para todos, basta obviamente, levando em consideração uma série de variáveis, muito esforço, dedicação, sacrifício, e a busca pelo conhecimento e pela excelência tanto no trabalho, como na prestação do serviço à sociedade.

CRMV Tocantins –  Como você se sente diante de tantas conquistas?

Nahuria Karajá – Entrei na faculdade com 16 anos e o período de adaptação foi muito doloroso. Eu reprovei na disciplina de bioquímica, o que me atrasou um ano também. Conclui o curso em seis anos, mas esse processo também foi importante para meu amadurecimento. Depois que passei em bioquímica, que aprendi a estudar, nenhuma disciplina mais me segurou. Dou graças a Deus por isso, tanto na graduação como na pós-graduação. O sentimento que tenho é de que, apesar das dificuldades, o estudo é muito democrático. O estudo não olha a tua origem, não olha a tua raça, não olha a cor da tua pele, não olha o teu cabelo, não olha os teus olhos. O estudo dá oportunidades para qualquer pessoa se desenvolver, especialmente se tiver muita dedicação, muito esforço, muita anulação, para conseguir um objetivo maior. E é exatamente esse exemplo que eu quero deixar, que por mais que não pareça provável, por mais que não pareça possível, por mais que pareça que a gente está nadando contra a correnteza, ainda assim é possível. Então essa é a principal mensagem que eu quero deixar. É possível para todos, mesmo que pareça impossível. Ainda assim, vale a pena lutar.

Meu irmão gosta de falar que eu ter chegado a esse nível de formação acadêmica, não só o mestrado, mas o doutorado também, é como se fosse uma mulher pisando na lua, porque na verdade é totalmente contrário as probabilidades de uma menina de aldeia conseguir alcançar esse nível de formação. Mas o que eu espero mesmo é que sirva de exemplo e que dê esperança para outras pessoas que fazem parte de uma minoria ou que não são de minoria também, mas para mostrar que é possível.

Ascom CRMV Tocantins 
Palmas, 16 de outubro de 2023.